
Quando se fala em sistema penal no Brasil, costuma-se dizer que ele é falho, lento ou ineficiente. Mas essa leitura esconde um dado incômodo: o sistema penal funciona muito bem — desde que se observe quem ele escolhe punir, quem ele escolhe proteger e quem ele empurra para lidar com as consequências dessa escolha.
A seletividade penal não é exceção nem desvio. É regra. E ela se manifesta desde a abordagem policial até o cárcere, passando pelo Judiciário e chegando, de forma muito concreta, à atuação da polícia penal.
Dois casos ajudam a enxergar essa lógica com clareza.
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Pena dura para quem está embaixo
Em um dos casos, uma jovem mulher, pobre, empregada doméstica, foi condenada à prisão por furtar um produto alimentício de valor irrisório. Mesmo sendo um crime de baixo impacto, a resposta do sistema foi dura e visível.
Não se trata apenas da condenação em si, mas do recado simbólico: para determinados corpos e perfis sociais, a tolerância é mínima. A pena funciona como exemplo, como demonstração de força do Estado sobre quem não tem poder político, econômico ou simbólico.
Esse tipo de condenação não é raro. Pelo contrário. Ele se repete diariamente e ajuda a explicar por que o sistema prisional brasileiro é formado majoritariamente por pessoas pobres, em sua maioria negras, condenadas por crimes patrimoniais ou por delitos de pequena monta.
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Garantias plenas para quem está no topo
No outro extremo, um governador de Estado, homem muito rico, com amplo poder político e acesso a estruturas jurídicas sofisticadas, teve provas de uma investigação anuladas por decisão do Supremo Tribunal Federal.
Do ponto de vista formal, discute-se legalidade, competência e limites da investigação. Tudo dentro da técnica jurídica. Mas o contraste é inevitável: o sistema que se mostra implacável com os vulneráveis torna-se cauteloso e contido quando julga os poderosos.
Aqui não há pressa, nem pena exemplar. Há garantias, filtros e autocontenção institucional. O direito penal muda de tom conforme o lugar social do réu.
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Não é caso isolado: é padrão
É importante deixar claro: isso não é casuísmo. O sistema penal brasileiro até condena, ocasionalmente, pessoas poderosas — e essas condenações ganham grande repercussão justamente porque são exceção.
Enquanto isso, centenas de milhares de pessoas pobres seguem encarceradas, muitas vezes sem condenação definitiva, sem visibilidade e sem comoção social. A exceção vira manchete; a regra vira estatística.
O encarceramento em massa no Brasil não foi construído a partir de grandes esquemas de corrupção, mas da criminalização cotidiana da pobreza.
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Onde entra a polícia penal nessa engrenagem
É nesse ponto que a seletividade penal revela sua face mais concreta.
Se o sistema escolhe quem será preso, ele também escolhe quem vai lidar diariamente com essas pessoas. A polícia penal atua justamente na ponta mais invisível e menos valorizada do sistema: o cárcere.
A polícia penal lida, todos os dias, com a população que o sistema selecionou para punir:
• pessoas pobres,
• majoritariamente negras,
• oriundas de contextos de exclusão,
• submetidas a prisões superlotadas e precárias.
Ao mesmo tempo, trata-se de uma força frequentemente desvalorizada, com pouca influência política, pouca visibilidade e condições de trabalho muitas vezes indignas. O Estado que prende em massa não investe com a mesma intensidade na dignidade do sistema prisional nem de quem trabalha nele.
Enquanto isso, forças policiais que lidam com crimes praticados por pessoas poderosas costumam operar em outro patamar de prestígio, estrutura e reconhecimento institucional.
Não é uma questão de mérito individual. É posição dentro do sistema.
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Uma lógica única, do início ao fim
A seletividade penal não termina na sentença. Ela continua:
• no perfil de quem é preso,
• no tipo de pena aplicada,
• nas garantias que são (ou não) acionadas,
• e no lugar que o Estado reserva à polícia penal.
O sistema pune com rigor os vulneráveis, protege os poderosos e empurra para o cárcere — e para a polícia penal — a tarefa de administrar essa desigualdade.
Não se trata de erro pontual, nem de desvio ocasional.
Trata-se de um método que organiza o poder punitivo do Estado todos os dias.
Enquanto essa lógica não for enfrentada de forma honesta, a ideia de igualdade perante a lei seguirá sendo mais discurso do que realidade.
Por Adriano Marques

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