Polícia ou custódia: profissionais em busca de uma identidade

É preciso superar a visão de que a profissão de agente penitenciário é uma derivação de uma polícia penal — que é a grande reivindicação da carreira. Há um profundo dilema entre ser essa polícia penal ou agente de execução penal.

Entrevista com Renato Campos de Vitto, Defensor Público do Tribunal do Júri no Estado de São Paulo, ex diretor geral do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) do Ministério da Justiça e ex assessor da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para a questão penitenciária.

Sentados num agradável café na Vila Madalena, bairro boêmio em São Paulo, Renato De Vitto e eu conversamos longamente sobre os dilemas e potencialidades da carreira de agente penitenciário.

Conforme fomos começando a conversa, fui sendo transportada para outro lugar. Saindo daquele local aprazível para ir mergulhando na experiência do encarceramento desde a ótica dos agentes prisionais. Da mesma maneira que as pessoas efetivamente privadas de liberdade, esses profissionais são invisíveis aos olhos da sociedade e vivem uma experiência profissional que oferece a mais temível das vivências: a de estar, em alguma medida, aprisionado. Ainda que em liberdade, esses profissionais vivem profundamente e a sua maneira, a experiência de estar encarcerados.

Apresento nesse texto algumas das principais reflexões trazidas por Renato De Vitto em nossa conversa, na esperança de que sejamos, como sociedade, capazes de voltar os olhos a esse grupo de profissionais, a fim de propiciar maior reconhecimento e motivação para que sigam trabalhando, e os ajudando a buscar, sobretudo, transformar “o estar preso/a” numa experiência efetivamente reintegradora e ressocializadora.

Crise de identidade?

Em seu ponto de vista, a carreira padece de clara falta de identidade. Até mesmo do ponto de vista legal, falta clareza sobre onde a carreira se enquadra. Há uma disputa no âmbito da Constituição Federal, já que que não está incluída em seu artigo 144 (que trata dos órgãos que compõem a segurança pública — polícias). Além disso, é um profissional pouco valorizado e com baixa autoestima.

Em seu período à frente do DEPEN, apresentava o maior índice de absenteísmo das carreiras federais, com profissionais que adoeciam e faltavam. Na ocasião, viveu a experiência de dois suicídios dentro de presídios federais, de profissionais engajados e formadores, dando a medida de uma carreira doente.

Na relação com os sindicatos, a construção da pauta lhe parecia extremamente imatura, quase um pedido de “olhe pra gente”, mas sem clareza sobre o que concretamente a administração pública podia fazer, além de incrementar cargos e salários. Eles queriam ter arma, serem olhados como policiais, ter direito a um hino e a um grito de guerra. Mesmo no sistema federal que é melhor estruturado e remunerado e com relação agente/preso quase ideal, não havia uma discussão mais profunda sobre a carreira por parte dos agentes.

Quais o termos do debate em torno do sistema prisional?

No debate sobre o sistema penitenciário brasileiro, o principal foco é a falta de vagas, que é um problema muito importante, mas não pode ser o principal ponto da discussão. Há também um sério de déficit de gestão prisional, que passa por trabalhar diretamente com as questões da carreira dos agentes penitenciários.

É preciso superar a visão de que a profissão de agente penitenciário é uma derivação de uma polícia penal — que é a grande reivindicação da carreira. Há um profundo dilema entre ser essa polícia penal ou agente de execução penal.

Para desamarrar esses nós, como diretor do DEPEN, insistiu muito na construção de um modelo de gestão e de um olhar especializado para o sistema prisional.

No entanto, a lógica do sistema foi capturada pela segurança pública. Os gestores penitenciários nos estados são tradicionalmente policiais, colocados ali para conter a população prisional, na lógica exclusiva de controle, segurança e contenção em um espaço de custódia que deveria ser tratado de forma mais completa e complexa, para funcionar mais organicamente, com a implantação de medidas de reintegração social das pessoas privadas de liberdade, por exemplo.

É claro que, sendo um locus de privação de liberdade há importantes questões de segurança, mas outros saberes são necessários para a construção desse espaço.

Para ele, a especificidade do sistema prisional não se confunde com atividade policial de investigação e de policiamento ostensivo. O sistema demanda especialização. Enquanto a atividade de custódia não for tratada em sua especificidade e os agentes seguirem brigando para serem considerados policiais, ainda que de segunda categoria, não se rompe essa lógica.

Como a carreira vive as dificuldades de incorporar a ressocialização como parte da sua função?

A seleção e a formação tem sido muito ruins. O modelo de contratação pública está em crise em muitas carreiras, mas, ainda assim, é uma etapa muito importante.

Os processos atuais privilegiam um fetiche pela armas, pelo operacional. Há um glamour do operacional policial. Aprender atirar, usar touca ninja e espargidor são grandes desejos… A carga de formação em segurança é muito alta. Mas quando o profissional ingressa no sistema prisional, o trabalho é outra coisa: cuidar da movimentação de presos no pátio, entregar comida, revistar visitantes.

Esse descompasso entre expectativa dos profissionais e a realidade da prática cotidiana gera frustração que, somada à baixa remuneração, pode gerar evasão.

Como melhorar a seleção?

O espectro de conhecimentos necessário ao trabalho de custódia é tão amplo que talvez seja preciso pensar em especialização: duas linhas, uma voltada para profissionais que trabalhem questões específicas de custódia, como movimentação de presos e segurança do estabelecimento; e outra voltada à reintegração social, com profissionais de serviço social, psicologia e saúde, por exemplo. Essa foi a solução adotada em Portugal, com a contratação inicial com base em menos exigências, e depois um amplo rol de especializações na carreira.

De toda forma, é fundamental investir em bases formativas mais sólidas para que os profissionais possam exercer seu papel na reintegração das pessoas privadas de liberdade, além de estruturar carreiras distintas, com as garantias necessárias às diferentes especificidades e mecanismos de fiscalização e controle.

Outra proposta apresentada por ele é a certificação dos cargos diretivos nas unidades prisionais. Diretores continuam sendo indicados, mas devem passar por uma prova e receberem a cerificação. Um modelo mais híbrido que integra a indicação política com qualificações técnicas.

E a relação entre presos e agentes?

A qualificação dessa relação é fundamental. O preso não deve ser visto como inimigo, já que o profissional está ali para garantir a legalidade do tratamento da pessoa que está cumprindo pena.

Cita uma comparação feita por uma pesquisadora entre a carreira de agente a o capitão de Mobi Dick. Em sua carência de identidade profissional, o agente prisional se fortalece na figura do inimigo e se assemelha ao capitão, que faz da razão de sua existência perseguir a Mobi Dick e acaba morrendo abraçado à ela.

A construção do sentido da profissão a partir da demonização da pessoa presa, também afunda os agentes. Se eles não ressignificam essa relação com o sujeito do seu trabalho, essa experiência se torna extremamente sofrida, porque ele também estão encarcerados. Alguns agentes chegavam a dizer que se sentiam vivendo em um regime semiaberto[1] ao contrário.

E por que você faz o que faz?

Em sua visão, a prisão é a persistência viva do navio negreiro, da senzala. É o espaço que não recebeu nada, e que resiste negativamente para receber mudanças positivas. É preciso cuidar desse lugar: das pessoas presas e dos agentes que também terminam aprisionados.

[1] A pessoa sai durante o dia para trabalhar e volta de noite para dormir na prisão.

 

Fonte: República Fellows

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