“Enfrentamento às facções vem tardiamente”, diz presidente do Conselho Penitenciário

Ruth Leite Vieira é advogada, especialista em direito penitenciário, professora da Unifor, membro da Pastoral Carcerária e presidente da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados. Ela é membro do Copen desde 2016.

A nova presidente do Conselho Penitenciário do Estado (Copen), a advogada Ruth Leite Vieira, atua na área há mais de 20 anos. Especialista em direito penitenciário, com ênfase em execução penal e ressocialização, ela é professora da Universidade de Fortaleza (Unifor). Já foi diretora do Instituto Penal Professor Olavo Oliveira II (IPPOO II) e coordenadora da Pastoral Carcerária. Atualmente, ainda preside a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) Fortaleza. É membro do Copen desde 2016.

A entrevista foi feita em dois momentos. Primeiro, antes da série de atentados iniciada em 2 de janeiro. Com o estouro da crise, O POVO voltou a ouvi-la, na última segunda-feira, 7. Para ela, as facções já se preparavam para os ataques desde o anúncio de que Mauro Albuquerque seria o novo secretário responsável pelos presídios. Ela alerta que a repressão policial por si não surtirá efeito e cobra que direitos previstos na Lei de Execução Penal sejam garantidos.

O POVO: Quais os principais desafios a senhora vê hoje no sistema penitenciário para essa nova gestão?

Ruth Leite: A situação atual do sistema penitenciário cearense ainda é de colapso. É muito difícil a gente falar… Hoje, existem no IPPOO II, cerca de 1.200 presos, sendo que a capacidade é 492. Não tem como você falar em uma estrutura como essa sem falar em colapso. Nada vai funcionar, não tem diretor que consiga. O que se consegue é manter os presos sem se rebelar, mas a ressocialização é impossível em um ambiente como esse. E o IPPOO II é o mais tranquilo hoje, dos masculinos. É um que não tá dando muito o que falar. Não é que ele não tenha problemas… Para você ter uma ideia. A muralha (do IPOOO II) tem 15 guaritas. Tem duas ocupadas. Então, você não pode cobrar de um trabalhador que não tem a menor condição de trabalhar. É assim em todos as unidades. Todas são dominadas por facções. Existe a Cepis que quem vai para lá diz que não é. Mas, de vez em quando, alguns (faccionados) são transferidos para lá. O IPPOO II que já teve escola, vários passos de trabalho, muitos cursos de profissionalização, não tem mais nada disso hoje. O que existe lá hoje é só o Livro Aberto, que é a redução por leitura. Outro projeto não se consegue fazer. É porque o diretor não quer? Não, é essa a situação. Como é que você vai equilibrar isso? Outras unidades conseguem fazer um pouco mais, outras um pouco menos.

OP: A última gestão (da secretária Socorro França) pode ser qualificada como?

Ruth: Foi uma gestão que ouviu. A gestão tentou, mas ela pegou o colapso. Os dois primeiros anos, com o doutor Hélio (Leitão, titular da Sejus entre 2015 e 2017), ele não teve… Na escolha das lideranças dele… Não tinha pessoas muito capazes de gerenciar a crise e o colapso piorou, porque é preciso ter uma liderança muito boa para poder fazer com que a pessoa, que não tem condições de trabalho, trabalhe além do que ela tem obrigação. Porque se os agentes penitenciários dissessem hoje: “Vamos ficar aqui só de braços cruzados, olhando, cumprindo o tempo que eu tenho que ficar aqui, eu não posso entrar aí porque está fugindo todas as condições de segurança que a lei diz”, eles teriam razão. (Se dissessem) “Eu não posso executar essa tarefa porque ela está fora de todos os padrões”. Eles teriam razão. Você tem que fazer pessoas arriscarem suas vidas para manter o sistema e isso só se faz com uma liderança fidedigna, uma liderança boa. O processo de colapso já existia antes. O processo de colapso não é de um ano, dois anos, três anos, é de décadas. Então, ele vem se agravando. Ninguém chegou com uma medida estruturante. Nenhuma gestão até hoje chegou com vontade de estruturar e fazer reformas estruturais. Ainda está esperando o Ceará. Todos vêm para maquiar.

OP: Algumas das políticas públicas mais faladas neste contexto de facções são a instalação de bloqueadores de celulares e o isolamento das lideranças em presídios federais. Como a senhora observa essas medidas?

Ruth: São duas medidas, mas não são duas soluções. O isolamento de lideranças já é praticado há, pelo menos, uns 15 anos, que eu me lembro. E não é suficiente. Porque quando você isola aquele líder, o outro já está preparado. Não vai fazer muita diferença se for uma medida isolada. Eles são impressionantemente organizados. Os bloqueadores da mesma forma. É um instrumento, que também isolado… O Estado tem que ver o custo-benefício. Porque não foi instalado, na minha percepção? Os bloqueadores são muito caros e, rapidamente, eles se tornam obsoletos, porque a tecnologia avança. Não encontraram ainda uma tecnologia — pelo menos, é a percepção que eu tenho — que bloqueasse de forma permanente. Mas não é isso que tem que ser feito. O que tem que ser feito é o controle. Todo mundo me pergunta: como é que entra celular no presídio? Quando você está no presídio, você sabe algumas formas. Entra com a visita… Se você fizer uma varredura nos presídios após um dia de visitas, você vai ver que uma boa quantidade de mulheres foram encaminhadas a delegacia, porque foram flagradas com celulares, drogas, algum ilícito. Entra pelo “rebolo”. Isso eu já vi muito. São pacotes que são arremessados para as cadeias. Nesses pacotes, eu já vi whisky. “Ah, mas como é que entra?” Não tem uma tela, uma grade. Aí, você vai dizer que nunca foi perdido? Agora, você não bota uma tela, uma grade, você vai ter condições de colocar um bloqueador? Você não botou monitoramento de TV — isso que você for em qualquer lojinha de esquina, você tem uma câmera e alguém estudando aquelas imagens. Todo canto, toda casa, tem aquela camerazinha. A maioria dos presídios no Ceará não tem. Só os novos, até a primeira rebelião e quebrarem tudo. Entra pela corrupção? Também, já foi pego. Agora, todo mundo é corrupto? Só indo lá para você vê. Uns vigiam os outros. Não se entra em uma unidade prisional sozinho. Nenhum agente, diretor vai até uma cela sozinho. Porque você só pode ir com pessoas diferentes, cada dia uma pessoa diferente, e uma fiscaliza a outra. O bloqueador é uma forma? É, se for viável. Porque, se for para botar bloqueador, e daqui a um mês… Veja bem: são dois policiais por muralha, você acha que dura quanto tempo um bloqueador no presídio? Tu achas que dura uma semana? Eu estimo um dia — e olhe lá, se não for destruído antes de ser montado. Está ótimo agora, teve um concurso, muita gente assumiu. Sabe quantos tem no plantão? Vinte agentes de plantão. Para 1.200. Tu não corrias não na hora que o negócio começasse a virar?

OP: Com a senhora vê essa situação do Ceará após os ataques? Como está o sistema penitenciário?

Ruth: O enfrentamento às facções criminosas vem tardiamente. E também vem de uma forma violenta. Ao longo de 20 anos que eu trabalho no sistema penitenciário, nós — Pastoral Carcerária, Direitos Humanos, Copen, tantos e tantos outros órgãos — fomos alertando. Foi mandando relatório, a muitos governos. E ao longo de todos os governos houve um negligenciamento muito sério. Então, nunca foi levado em consideração o problema penitenciário como algo que um dia fosse estourar. No fim, chegou esse nível. O conselho se coloca à disposição para contribuir no que for preciso. Se coloca à disposição para tentar entender, ajudar. E, dentro das questões de direitos — porque eles (os presos) falam muito em direitos violados, nos “salves”, pelas informações que temos lá de dentro… Então, existem muitos direitos que podem ser garantidos mesmo sem nem entrar nos presídios, como, principalmente, assistência jurídica. É necessário também um olhar sobre os direitos porque, senão, vai ficar muita truculência e a resposta vai ser cada vez mais violenta. Mas o Copen não se posiciona contra a decisão do Governo, que resolveu enfrentar as facções. Se coloca à disposição do Governo, à disposição do secretário, para contribuir no que for preciso. Principalmente, no que ele, no momento, não está podendo fazer, que é a garantia de direitos.

OP: As medidas tomadas até agora estão sendo efetivas?

Ruth: A Lei de Execução Penal prevê televisão — mas como uma forma de educação — comunicação com o mundo exterior, prevê trabalho, prevê estudo, prevê muitas coisas. Como eu falei, como tudo foi negligenciado, esses direitos foram dados de uma forma inadequada. Pelo que eu conheço da metodologia do secretário (Mauro Albuquerque), ele retira tudo para depois redistribuir. Conforme outras regras, estabelecendo outro regime, segundo ele, mais adequado para a utilização de direitos. Mas a gente não conversou ainda com o secretário. Ele ainda não nos recebeu. Ele não teve agenda. Não abriu agenda para que o Copen e as outras entidades pudessem conversar e entender o que ele está fazendo. Por isso, a gente não pode dizer se é adequado ou não. Não estamos sabendo ainda ao certo qual o objetivo do secretário.

OP: E as declarações dele, como a senhora analisa? Por exemplo, em um, primeiro momento, ele chegou a dizer que não reconhecia as facções. Há uma suposição que circula que essas declarações podem ter atiçado esses ataques. Seria isso mesmo?

Ruth: Eu vejo assim: a gente já tinha conhecimento, quem trabalha no sistema já tinha conhecimento, quando o nome dele surgiu, apareceram muitos “salves”, dizendo que se fosse ele, eles não iriam aceitar. E, se fosse ele, se ele começasse a aplicar a metodologia dele, os presos não aceitariam. Então, a gente sabia e, creio eu, o Governo também já sabia. E bastou uma palavra dele, dizendo que não reconhecia as facções e que não ia deixá-las separadas, que eles já começaram os ataques — porque eles já estavam preparados para isso. Se não fosse essa palavra dele — eu vejo assim — mesmo assim, no momento em que ele começasse a agir, começariam os ataques.

OP: O que a senhora espera que possa resultar essa política de não mais separar as facções?

Ruth: É muito inesperado. Porque, tudo hoje, nesse novo governo, está muito diferente da lógica que a gente teve nos últimos tempos. Eu temo que a Força Nacional e todos os esforços que estão sendo feitos não sejam suficientes, porque eles estão espalhados no Estado todo e no Brasil inteiro. Então, eu temo que, à medida em que as forças cheguem, eles ataquem outros lugares. E todos os salves que eu recebi hoje (segunda-feira, 7) indicam que eles não vão parar. Então, é uma situação muito nova para a gente avaliar. E a gente nem sabe o poder do Estado nem tem noção do poder das facções. É muito sombrio. O que a gente sabe, no entanto, é que, se a gente finalizar com a garantia de alguns direitos, com a garantia de trabalhos, estudos… Se disser que existe uma luz no fim do túnel, não vai ficar assim para sempre, existe um caminho que os presos podem percorrer dentro do sistema prisional, isso a gente sabe, que pode ser, que amenize. Mas ficar só nisso, na força, sem sinal de garantia de direitos dentro da legalidade, eu temo que eles não parem mesmo não. Porque eles têm muita força, estão em todos os lugares. Você percebe que no Ceará inteiro já teve ataques. Não precisou sair nenhum bando daqui para Juazeiro do Norte para atacar lá. Eles são orquestrados.

Carreira

Ruth Leite Vieira é advogada, especialista em direito penitenciário, professora da Unifor, membro da Pastoral Carcerária e presidente da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados. Ela é membro do Copen desde 2016.

 

 

Fonte: O povo

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