Walter Waltenberg diz que não consegue ver mais sentido em prender ninguém

Após mais de 30 anos de magistratura, não consigo ver mais sentido em prender ninguém

Durante anos, tive a sorte de mandar prender pessoas ora nos fundos da delegacia em Rolim de Moura, ora no centro de correição da Polícia Militar. Nos dois lugares, a tônica sempre foi uma maioria de pessoas decentes, capazes de transmitir algum valor ético àqueles para quem a lei impôs cerceamento temporário da Liberdade.

Temos sido pródigos em decretar prisões temporárias, mas já não nos perguntamos mais sobre a utilidade disso. Talv o revermos os conceitos de eficácia e eficiência e os conciliarmos na prática.

É absolutamente certo que, quando mandamos alguém para a prisão, com o modelo que temos hoje, estamos simplesmente oferecendo mão de obra para as organizações criminosas que não só comandam as ações nas penitenciárias, como impõem sua própria lei. Quem não obedece a seu comando não tem espaço ali.
A consequência mais suave da desobediência é a degradação do caráter, pela perda da dignidade, com práticas obscenas de toda ordem.

Após mais de 30 anos de magistratura, não consigo ver mais sentido em prender ninguém. A prisão é algo que se opõe hoje à solução de um problema social e a possibilidade de ressocialização é pura utopia diante da realidade carcerária.
Nos dias atuais, só faz sentido prender como instrumento de vingança, como se ao preso importasse mesmo se está dentro ou fora das grades. Após ser inserido em uma das muitas facções que habitam nossas prisões, o preso adquire os valores daquela sociedade criminosa, e passa a agir de acordo com esses valores. As sucessivas condenações por assalto, estupro, homicídio são como graduações que qualificam o preso, cada vez mais, na hierarquia do crime. Já não somos mais os seus algozes. Somos aqueles que validam os feitos que os tornam cada vez mais poderosos.

Não podemos mais servir como instrumento de vingança de uma sociedade que não sabe mais o que fazer com aqueles que se voltam à prática do crime. Na aflição do cumprimento de metas, na angústia da Justiça tardia, na impotência dos presídios superlotados, já não olhamos mais nos olhos dos nossos presos. Chego a pensar que não os olhamos mais de vergonha, por termos tido a coragem de contribuir com o crescimento, dia após dia, das fantasticamente prósperas companhias do crime.

Haverá um dia em que nos recusaremos a jogar nossos presos nos calabouços medievais sem qualquer propósito? Haverá um dia em que diremos não à superlotação  dos presídios?
Eu não tenho uma resposta pronta para essas questões, mas eu estou absolutamente convencido de que fazer o reencontro do preso com alguma dignidade pode ser o início de um tempo diferente, onde se possa vislumbrar como possível a reinserção na sociedade ética, onde, por enquanto, somos maioria.

Por ora, cada um de nós, magistrados, talvez possa fazer o exercício simples de se perguntar o propósito do decreto que está a assinar. Talvez chegue um dia em que tenhamos a coragem de dizer que não vamos mais superlotar os presídios, simplesmente porque não há prisão que dure para sempre. A estrutura vergonhosa que existe nos moldes atuais, recebe o preso no primeiro grau e o devolve pós-graduado em tudo o que nos causa mais repulsa e, principalmente, um resto de ser humano, sem os valores que o tornam reconhecível como tal.

Observar de verdade a Lei das Execuções Penais talvez seja um bom começo.


Fonte: Walter Waltenberg

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